terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 23


No dia seguinte, ela tinha que pegar um grupo de turistas e também precisava pesquisar e digitar um trabalho para entregar na escola. Eu me ofereci para fazer o trabalho. Emocionada, ela me beijou e foi cumprir sua missão.
Fui a um Cyber Café que ficava perto da casa, pus-me a pesquisar sobre Modo de Produção Feudal e depois de ter material suficiente, li, produzi um texto e o arquivei.
Saindo do Cyber, vi uma cena que me deixou atônito: um menino arrebatou a bolsa de uma senhora e saiu correndo. Instintivamente, sai em seu encalço. A ira que senti por vê-lo se apropriando de algo que não lhe pertencia e por ter se aproveitado do estado vulnerável da idosa para roubá-la, deve ter disparado minha adrenalina e aumentado consideravelmente minha velocidade, a ponto de eu conseguir agarrar o moleque.
Ao capturá-lo, eu me sentia um autêntico predador intimidando a caça indefesa e sem dó, bati no garoto. Bati e o ofendi. Ele chorava e implorava para que eu parasse, contudo quanto mais ele o fazia, mais estimulava meu sadismo e meu desejo de sobrepujá-lo e mostrar para ele quem era o mais forte. Até que a vitima dele chegou com um policial franzino e ela, chorando, me pediu que eu parasse de bater no menino, pois do contrário, poderia matá-lo.
Caí em mim e vi o guri ensanguentado, cheio de hematomas, caído no chão, chorando e me pedindo clemência. Olhei nos olhos cheios de dor do menino e vi a fome estampada neles, e vi carência e vi tanta dor, que me envergonhei. Bastava só ter recuperado a bolsa e retido o garoto, mas fui pior do que ele que se aproveitou da fragilidade da senhora para roubá-la, pois me aproveitei de vulnerabilidade dele para molestá-lo fisicamente.
Ensandecido, fugi daquele lugar. Queria fugir de mim mesmo, mas aonde quer que eu fosse, a fera que eu tinha dentro de mim estaria junto. Corri até a casa e me refugiei. Tomei uma ducha e chorei por horas tendo a imagem do menino violentado por mim na minha mente. Eu queria pegá-lo no colo, dar-lhe carinho, amor, comida, um lar, estudo... Eu me sentia culpado e queria me redimir. Eu sabia que não só ele, não só os pais, não só a conjuntura, mas que também eu era responsável pelo fato de ele estar roubando.
Adormeci. Um sono pesado e cheio de pesadelos. Devo ter despertado todos os meus demônios com aquela atitude brutal. Logo eu que estava tendo acesso a tantas experiências maravilhosas, a tanto conhecimento, a tanto amor?...Logo eu, o ex-padre, o peregrino, o andarilho, o cigano?...Logo eu, que tanto defendi os menos favorecidos, os excluídos?... Que diabos eu era afinal? Anjo ou Demônio?
 Quando Chencha chegou, me atraquei com ela e tive seu colo. Chorei mais ainda e ela me permitiu chorar até que eu conseguisse secar minhas lágrimas e me sentisse melhor. Contei-lhe o que havia ocorrido. Ela ouviu, refletiu, sorriu para mim e disse:
- Acho melhor você se perdoar. O que foi feito, já está feito e ficar com essa culpa não é interessante. É totalmente contraproducente. Faça dessa dor de remorso a grande lição para adoçar seu instinto de justiça e nunca mais cometer esse delito contra você mesmo, que é a parte mais ferida na história.
- Não entendo.
- Mais cedo ou mais tarde todo agressor sofre a ação que infligiu a alguém. Ou pela própria consciência, ou por outro justiceiro impulsivo.
- Eu jamais imaginei que fosse fazer isso de novo.
- Aconteceram outras vezes?
- Muitas. Principalmente na infância e na adolescência. Sempre tive uma tendência muito forte de fazer justiça com as próprias mãos e quando via alguém sendo ultrajado ou humilhado, me dava um troço que eu só faltava matar o agressor. Depois que entrei no seminário, tratei de conter esse ímpeto e o fiz com tanto esmero que já o julgava extinto. Ledo engano! Quem sou eu, Chencha? O que posso fazer para viver com esses dois que vivem em mim?
- Assuma sua polaridade.
- E continuo sendo justiceiro?
- Não é isso. Entenda. Há uma grande diferença entre sermos polares e sermos duais.
- Como assim?
- Quando nos prendemos à dualidade, as nossas oposições se contrapõem e isso nos anula. Não aceitamos que nossa luz e nossas trevas possam interagir e conviver bem. Não nos integramos com nossa sombra e como não podemos nos equilibrar numa perna só por muito tempo, desabamos. O ideal é que interiorizemos e aceitemos nossos pólos, pois assim nossas diferenças, ao invés de se contraporem, passarão a se complementar e assim nos tornaremos seres completos, nos libertaremos da dualidade. Aceitar a polaridade é como se alicerçar sobre as duas pernas.
- E como faço isso?
- O primeiro passo é aceitar a polaridade. Você a aceita?
- Aceito.
- Jura que nunca mais tentará ser apenas bonzinho e encarará de frente suas maldades?
- Sim. Juro.
- Bom menino. Então considere que todos os seres são extensão de você mesmo e que por maior que seja o conflito, você deve encontrar um ponto de harmonia entre você e o outro. Nunca destrua a vida de ninguém para realizar seus desejos.
- Isso é forte! Sabe de outra coisa que me confunde?
- Diga.
- Embora eu tenha me desapegado de toda uma vida que construí, temo que não consiga meios de subsistência no futuro. Ainda tenho algum dinheiro, mas não trabalho e quando a gente não trabalha, dinheiro se esvai e não volta.
- Já vi muito trabalhador se acabando e perdendo dinheiro... Até mais do que andarilhos...Relaxe, cigano! O que é necessário sempre estará à mão. Só o que não o for, será tirado de você.
- Isso na teoria é muito belo, filosófico e fácil.
- Conecte-se com tudo que tem afinidade com você e o mundo lhe pertencerá, amigo. Nada do que você realmente necessite lhe faltará.
- Como lidar com meu instinto de justiça?
- O verdadeiro poder nos torna sensíveis com relação aos outros e nos confere gentileza, diplomacia e imparcialidade. Tudo isso faz do verdadeiro poderoso, um ser Impecável, uma Alma Excelente, um Ser Elegante que saberá bem servir, por saber ser realmente político.
- Como posso lidar com minhas aptidões, com meus dons para exercer meu poder?
- Cada um de nós veio para criar algo que beneficiará a nós mesmos e a outrem. O Universo sempre fornecerá as formas que usaremos para prover o outro com nossos “milagres”. Ancore no presente, Gilberto. É tudo o que você tem.
- Te amo, mulher!
- Te amo, homem.
Dormi como uma criança cansada após brincar todo o dia na praia da existência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário