sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 22


À noite, preparei uma gostosa refeição e vinho para me refestelar com minha amada. Jantamos à luz de velas e vivemos um clima de encanto e romantismo:
- Como você lida com os seus sentimentos? – Ela me perguntou.
- Engraçado! Embora eu seja muito sensível, nunca parei para refletir sobre isso.
- Hoje a vida te deu um grande presente, colocando em seu caminho o médico e o vendedor de lanche. A Terra está disposta a nos dar esses presentes a todo momento e para que possamos desfrutar plenamente deles, devemos estar enraizados, sabe o que isso significa?
- Não.
- Precisamos nos escancarar para toda a imensidão dos nossos sentimentos. Só assim, ancoramos plenamente no planeta.
- Explique-me melhor.
- Por exemplo, antigamente eu usava a máscara da fortaleza...
- Como assim?
- Quando meu pai morreu, eu tinha 12 anos. Ficamos eu, minha mãe e meus três irmãos que na época tinham 10, 9 e 7 anos de idade. Para ajudar minha mãe a tocar a vida e criar meus irmãos, tive que amadurecer muito cedo e me tornei “o homem da casa”. Comecei a trabalhar cedo para ajudar nas despesas, estudava, ajudava a minha mãe com as encomendas de doces e salgados, ajudava meus irmãos na escola e ainda cuidava de educá-los e orientá-los. Tudo isso gerou em mim essa ilusão de que eu tinha que ser forte o tempo todo. Os quatro passaram a depender da minha energia e para não frustrá-los, para suprí-los sempre, passei a negar toda a minha fragilidade, todos os meus limites, todas as minhas dores. Eu dava colo para todo mundo; mas não havia colo para mim, porque eu era a forte.
- Eles moram aqui?
- Não. Vivem na capital. Todos vivíamos lá, mas não suportei carregá-los em minhas costas, surtei e vim embora para cá quando tinha 21 anos, há 14 anos atrás.
- Como foi isso?
- Os anos passaram e eu fui aguentando. Minha mãe quase sempre depressiva; Manuel e a dependência alcoólica, Gustavo e Paco eram bons, mas me sugavam emocionalmente. Fui me travando, me anulando, negando a mim mesma, até que um dia, eu tinha 20 anos, explodi. Fiquei doida, fui internada num manicômio e permaneci lá uns três meses. Foi bom que me doparam tanto, que eu só vivia dormindo. Acho que repus em noventa dias tudo o que perdi em oito anos.
“Saí de lá ainda meio aluada, mas estável. E foi muito interessante haver chegado em casa e ter constatado que todos souberam sobreviver sem mim. Comecei a fazer terapia com um Xamã, com o objetivo de resgatar minha individualidade, reprogramar minha vida e dar uma guinada. Eu havia trancado tanto meus sentimentos para sustentar minha família que emperrei minha vida e perdi a noção do meu tempo e do meu espaço no mundo. Fui fundo em mim mesma, assumi meus sentimentos, encarei minhas dores físicas e psíquicas, aprendi a orar com as Sete Direções”...
- Como é isso?
- Depois eu vou te ensinar. E num belo dia, resolvi deixar de cuidar da vida deles e passei a cuidar da minha. Vim embora para cá. Por amor a mim mesma, Gilberto, optei por abandonar as pessoas que eu mais amava, porque eu precisava assumir minha existência. Às vezes, isso é necessário.
- E hoje?
- Hoje nos damos bem. Cada um na sua. De vez em quando vou lá ou alguns deles vêm aqui. Estamos todos vivos e bem.
- E o Xamã que te ajudou a se reestruturar? Como se chamava?
- Ele se chama Coiote Vermelho. É um andarilho como você. Deve estar em algum lugar da Terra, se é que não já partiu para outro planeta.
- Que mais você aprendeu com ele?
- Tantas coisas... Mas têm umas mais marcantes. Teve um dia em que fui fazer uma sessão com ele. Eu estava com o pé enfaixado devido a uma entorse. Quando entrei em sua casa, ele estava fumando seu cachimbo, olhou-me com seus olhos sérios e brilhantes e me perguntou: “Que foi isso?”. Sem graça, respondi o que havia acontecido. Ao que ele questionou: “Quem pôs essa coisa em seu pé?”. E eu respondi que tinha sido o médico. Ele sorriu compadecido de mim e falou suavemente: “Cabe a você curar a si mesma, Chencha. A maioria de nós humanos tem essa mania besta de se adoecer, se quebrar e ir direto para um médico a fim de que ele faça o conserto que caberia a nós mesmos fazermos.”. Fiquei indignada com ele e retruquei dizendo que ortopedia não era minha especialidade, nem terapia holística, e era por isso que fui ao ortopedista, e estava fazendo tratamento com ele, Coiote. Sabe o que ele me disse e que me fez calar?
- Não!...O que ele disse?
- “Meu objetivo é fazer de você o que foi feito de mim. Você será sua própria Cura.”. Fiquei sem voz e me rendi aos seus ensinamentos. Aprendi de tudo um pouco para me curar e consertar o que eu mesmo quebro, ou limpar minha própria sujeira.
- Não sei lidar com minhas dores – confessei – Sempre fui treinado para suavizar a dor alheia e me ocupar dela, para esquecer o que me dói.
- Talvez por isso tenhamos nos atraído. Temos algo a aprender e ensinar, um com o outro.
- Como devo me relacionar com minha dor?
- Por que se apropria da dor com tanto afinco?
- Porque a sinto.
- O fato de assumí-la não quer dizer que tenha que ser tão vinculado a ela. Embora a dor seja uma grande mestra, quando necessária, não deve ser tão íntima. Quanto maior for o grau de evolução, menor será a dor. Ela só deve ser vista como o instrumento da Lei que nos orienta a andar certo. A partir do momento em que aprendemos com ela, é hora de abandoná-la e deixar a alegria entrar.
- Como você encara a dor?
- Que pergunta? – Rimos – Quando ela chega, me comunico com ela, pergunto o que quer me sinalizar e ouço sua mensagem. Aí me purifico, como e bebo o que me faz realmente bem, movo meu corpo e pesquiso em várias fontes os mecanismos de cura dos quais posso lançar mão. Aí me curo.
- Até com uma dor de cabeça insuportável você age assim?
- Por que não?
- Sei lá, um analgésico de vez em quando faz mal nenhum...
- Pode ser. Mas o grande objetivo das drogas é mascarar as mensagens do corpo. Elas fazem o problema de refém. O incomodo melhora, vem o alivio, mas a merda se recolhe para um calabouço mais profundo e sem tranca. Mais cedo ou mais tarde, ela vem à tona e vem mais forte.
- A humanidade é doente.
- Sim. Muitos optaram pelo caminho da doença. Ou por escolha cármica, ou por burrice mesmo. Toda doença física, por exemplo, vem de desequilíbrio energético. Se houver um trabalho corporal legal, desaceleração de ritmo e economia de compromissos, cura de traumas, aquietação mental e espiritualização profunda, te garanto que a saúde integral será garantida.
- E no caso de uma doença de nascença. De uma escolha cármica.
- Sempre há um meio de se atenuar a sintomatologia.
Então saímos para ver a lua. Estava cheia e linda. Abraçamo-nos e ficamos em silêncio, contemplando-a. Até que Chencha me perguntou:
- Que sente quando a vê?
- Hum! Magia... Vida. Sinto como se ela me guiasse...
- Não é “como se”. Ela realmente nos guia. Tudo que é vivo tem água e responde ao ciclo interminável da Lua.
- Explique-me isso.
- Odeio relógio. Com o advento da civilização e seu aparente desenvolvimento, o ser humano sentiu a necessidade de marcar o tempo conforme o ritmo louco das obrigações. Isso fez com que ele se distanciasse dos ciclos naturais, traísse a própria natureza, o próprio ritmo. O saldo disso é o stress, a doença, a depressão e outros lixos... Dividimos o tempo, despedaçamos nossa essência e isso ocasionou uma obsessão materialista que norteia nossa dimensão.
- Que podemos fazer para viver melhor?
- Muitas coisas, mas nesse caso. Se tivermos a coragem de nos libertar do consumismo, da mídia, dos padrões limitantes e usarmos o relógio só para nos basear em compromissos que possamos arcar sem exaustão, poderemos nos reintegrar com a Lua e prestarmos mais atenção a sua sabedoria. A cada Lua Nova do mês, nasce uma nova história que se desenvolve, enquanto ela é Crescente, e chega ao clímax quando ela está Cheia. Depois ela se conclui na Minguante e morre, para que novas histórias possam surgir e ser vividas.
- Isso é lindo!
- Isso é a Lei.
Tivemos uma noite fantástica. Fizemos amor e dormimos felizes, no quintal, iluminados pela Luz que explodia de contentamento.

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