terça-feira, 30 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 26

Na madrugada do dia seguinte, ela me despertou com um beijo e me chamou para irmos às ruínas e é claro que topei. Chegando lá, fizemos um circulo no chão, arrumamos os quatro elementos (água, fogo, terra e ar) e sentamos um de frente para o outro:
- Gilberto, quero lhe apresentar à 4ª dimensão. Está disposto a conhecê-la?
- Sim.
Ela me mandou deitar e relaxar:
- Pense num sentimento que o incomoda. Balance a cabeça silenciosamente quando o identificar.
Pensei na culpa que sentia por ter batido em Luiz daquela forma. Eu ainda não havia conseguido me perdoar. Balancei a cabeça e Chencha prosseguiu:
- Ótimo!Quero agora que você aumente a intensidade desse sentimento a ponto de se sentir esmagado por ele.
Eu o fiz e me senti mal. A culpa cresceu tanto que se tornou maior que eu mesmo e foi me tomando de tal forma que me senti acorrentado, comprimido, sufocado.
- Agora destrinche esse sentimento, vá à sua raiz e verifique as implicações dele sobre você – comandou Chencha.
Não sei como, me apartei da culpa e comecei a vê-la fora de mim, como um objeto de estudo. Vi que ainda tinha muitos resquícios do meu passado católico imerso na noção de pecado, céu e inferno. Vi que a sentia por ainda não ter me integrado com minha própria sombra. Vi que ela me fazia sentir péssimo e me questionei por que eu ainda me submetia a um sentimento que eu mesmo gerei e que portanto estava sujeito a mim? Vi que poderia exercer meu domínio sobre a culpa e fazer dela o que bem entendesse.
- Agora assuma seu poder, Gilberto, e submeta a culpa. Coloque-a em seu devido lugar e do tamanho que desejar.
Senti um calor interno e uma liberdade imensa fluindo por minhas artérias e veias. Reduzi a culpa ao tamanho de uma formiga e a esmaguei. Senti-me vitorioso e cantei meu triunfo pelos quatro cantos. Ouvi então minha companheira dizer:
- Abra os olhos.
Ao abri-los, vi-me numa estanha dimensão. Era o mesmo lugar em que estávamos desde o início, mas havia algumas diferenças... Pessoas, mitos, crenças, padrões...
- Não se assuste – Chencha me tranquilizou. – Bem-vindo ao reino da mente coletiva humana. Os sentimentos e pensamentos de toda a raça humana se misturam aqui, formam teias fantásticas. Bem-vindo ao mundo dos arquétipos.
Então surgiu em minha frente um ser bizarro que era o amálgama de vários ditadores da história da humanidade. Uma mescla de Hitler, Fidel, Pinochet e outros tantos!
- O que é isso?! – perguntei.
- O Arquétipo da Tirania. É um Annunaki.
- Que é um Annunaki?
- Eu sou um dos Guardiões dessa Dimensão – respondeu-me o ser. – Sou um dos controladores da Elite Global. Sou aquele que dita as normas, a conduta, o consumo e os limites.
- Não vou com a sua cara – falei.
- Insolente. Merece uma repressão!
Em seguida me vi dentro de uma sala de tortura e fiquei apavorado. Vários algozes estavam se preparando para me flagelar e meu medo cresceu. Ouvi a voz de Chencha em minha mente: “Gilberto, tudo aqui é mental. Tudo é criação da sua mente. Saia do medo e gere um arquétipo de prazer com seu pensamento e sentimento”.
Concentrei-me e pensei na última vez em que fizemos amor. Subitamente o cenário mudou: eu estava na concha de Afrodite com a belíssima Deusa do Amor e vi Eros e Psique em pleno ato amoroso. Sentimentos fortes de amor, prazer, posse e ciúme me tomaram, mas me lembrei de que ali tudo era mental e comecei a brincar com os arquétipos:
Pensei em Rock’n Roll e me surgiu Elvis Presley. Ele cantava e mexia diante de mim e de uma plateia imensa e todos nós íamos ao delírio. Foi aí que recordei que estava na 4D e me reportei à mentira e me deparei com Pinóquio. Fiquei deslumbrado por estar diante do boneco que queria ser gente. Ele me perguntou o meu nome e eu falei “Miguel”, então meu nariz começou a crescer e eu achei aquilo tão engraçado que comecei a rir e aquela alegria trouxe para mim Mazzaropi e a partir dali, cada ideia ou emoção que eu acessava estava ligada a um arquétipo, a um mito, a um símbolo. Pensei em revolução e fiquei cara a cara com Che Guevara; pensei na fome e fui parar na Etiópia; senti dor e vi Jesus na cruz; pensei em futebol e vi Pelé; senti frio e vi um esquimó, e por aí vai...
Num determinado momento, fiquei tão cansado dos arquétipos que desejei rever Chencha, que me apareceu sorridente:
- Que foi, viajante? Cansou?
- Cansei. Isso funde a cabeça.
- É verdade. Até os grandes deuses mitológicos habitam aqui.
- Jura?!
- Sim. E isso não é grande coisa. Eles foram criados pela mentalidade annunakiana para enganar as pessoas.
- Com que finalidade?
- Enganar, manipular, controlar...
- Para quê?
- A espécie humana é poderosíssima, mas a maioria de nós desconhece o infinito poder que tem e por isso mesmo é presa fácil nas mãos da Elite, que está concentrada nas mãos de poucos e o que menos quer é que as pessoas acordem e rompam com esse cativeiro. A Elite considera a humanidade como um brinquedinho avançado e não quer perder sua diversão.
- Isso é terrível!
- Mas não desanime. O que não falta é gente para ajudar as pessoas a romperem suas próprias correntes e multiplicarem a energia do Amor e da Liberdade.
- Chencha, fale-me dos Deuses.
- Cada um de nós é a Divindade, mas ao longo dos séculos, nos condicionaram a buscar o Deus e a Deusa fora de nós. Alguns desses deuses nada mais são que inteligências extraterrestres. Meros astronautas. Outros tantos, jamais chegaram a existir e são apenas criações do inconsciente coletivo ou elementais formados de idéias fixas e crenças limitadoras. Infelizmente nos ensinaram a enfrentar a vida, buscando o consolo e a força em seres imortais que podem nem mesmo ser reais.
- Isso quer dizer que é tudo um engodo?
- Nem tanto. Existem inteligências e elementais bacanas aqui também.
- Então porque não nos voltamos apenas para estas?
- Porque é a necessidade e a crença humana que mantém vivos os deuses. E já que há necessidades positivas e negativas, também haverá manifestações positivas e negativas.
- Sinto-me uma marionete! – Desabafei desanimado.
- Nem tudo está perdido. Quando a pessoa se conscientiza do próprio poder, passa a ignorar as influências da 4D sobre si e com isso, passa a ter uma relação bem sadia com essa dimensão.
- Odeio a 4D!
- Alivie seu coração, muchacho! Há também coisas boas por aqui.
- Como por exemplo?...
- Os poetas, os escultores, pintores, escritores, artistas, diversos lideres e pensadores nada poderiam criar ou fazer se não sugassem, como colibris, os arquétipos grandiosos que também aqui habitam. Eles sugam aqui e fertilizam lá na superfície terrestre.
- Por que vêm sugar o néctar justamente daqui?
- Porque os Arquétipos colocam desejos ardentes em nossa mente e nos influenciam a criar novas realidades.
- O que faz a diferença então é a forma com que lançamos mão desse maravilhoso poder.
- Isso mesmo!
- É... Retiro o que disse a respeito dessa dimensão. Estou começando a gostar da 4D.
- Que bom, meu amigo! E então? Vamos voltar à 3D?
- Vamos.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 25


Após algum tempo, voltamos para casa. Ela foi trabalhar e eu arrumei o espaço, lavei nossas roupas e preparei o almoço. Depois sai e quando me percebi, estava no mesmo lugar em que agredi o menino de rua e senti imensa angústia e vontade de vê-lo. Andei uns duzentos metros e eis que me deparei exatamente com ele, que estava com alguns curativos. Ao me ver, se tomou de medo e quis fugir, mas eu o segurei, dessa vez sem violência e lhe disse:
- Por favor, pare. Não vou lhe fazer mal. Perdoe-me por ter sido tão cruel com você. Quer comer alguma coisa?
Surpreso e secando as lágrimas, ele deixou de oferecer resistência a mim e ainda desconfiado, falou?
- Você só pode ser maluco! Ontem quase me matou e hoje me pede perdão e quer me pagar algo para comer...
- Está com fome, não está?
- Estou.
- Então?
- Estou tão dolorido que não tenho nem força para roubar ou pedir. O jeito é aceitar seu convite. Inimigos são assim, como dizia minha avó: “Se não pode vencê-los, junte-se a eles”.
- Não sou seu inimigo – eu lhe disse.
- E amigos fazem o que você me fez ontem?
Fiquei sem graça e só conseguir responder o seguinte:
- Hoje é outro dia.
- E amanhã o que será?
- Sei que exagerei, mas você ia lesar aquela senhora.
- Eu estava com fome!
- Vamos sentar, comer e conversar? Aqui no meio da calçada não é muito confortável.
Levei-o a uma lanchonete próxima. Pedi um milk shake e um misto para mim; ele, dois hambúrgueres, um refrigerante e batatas fritas:
- Como se chama?
- Luiz.
- Por que vive nas ruas, Luiz?
- Meus pais morreram, minha avó cuidou de mim, mas está doente. Carrego compras, peço e roubo para comer e alimentar a velha.
- Não tem vontade de mudar de vida?
- Vontade não basta. Tenho que ter condições.
- E se eu te der um dinheiro para você comprar comida para vocês e procurar um curso profissionalizante para fazer e melhorar de vida?
- A troco de que você faria isso por mim? Você gosta de garotos como eu, não é? Pederasta! Maricón! Quer mesmo é fazer um programa comigo... Pois saiba que você me maltratou tanto que nem condição de dar meia hora de cú para conseguir algum trocado eu tenho.
- Não é nada disso – respondi chocado com a rispidez dele, mas compreendendo sua revolta. - Eu tenho o direito de me arrepender do que eu lhe fiz, embora você não seja “flor que se cheire” e quero te compensar por isso e te dar uma oportunidade de viver com dignidade.
Nossos pedidos chegaram e fiquei impressionado com a avidez desenfreada que meu novo amigo comeu. Pobrezinho!  Estava faminto.
Quando ele terminou, estava feliz e com outra energia:
- Caramba! Eu estava com muita fome! Há muito tempo que não como uma coisa tão gostosa!
Pela primeira vez aquela vítima sul-americana sorriu para mim e eu tomei aquilo como um dos maiores prêmios que recebi na vida.
- Eu merecia aquela surra – disse-me. – Não tinha que estar roubando a velha.
- Você merecia uma correção; não um espancamento. Merece um trabalho que o tire dessa vida.
Terminando a refeição, continuamos conversando e foi nascendo uma delicada amizade entre nós. Depois de horas, entreguei-lhe um envelope e lhe disse:
- Isso aqui é para você.
- O que tem aí?
- Uma chance e talvez seja a sua última. Há uma soma de dinheiro aí, que dá para comprar comida para um mês e que pode lhe possibilitar fazer um curso profissionalizante e investir numa carreira. Quer ficar nas ruas para o resto da vida?
- Não. Mereço uma vida digna.
- Então, tome. Esse dinheiro é seu e eu espero que o use de forma sábia e o multiplique.
- E eu que pensei que ter cruzado com você fosse a pior coisa que já me aconteceu...
- Aparências, quase sempre, enganam.
- Por que está fazendo isso por mim?
- É mais por mim mesmo do que por você, Luiz.
- Como posso fazer para lhe retribuir?
- Mude de vida.
- Eu prometo que vou mudar.
- Prometa a si mesmo; não a mim. Você não me deve nada.
- Não cabe a você dizer-me se lhe devo ou não. Cabe a mim decidir isso.
- Tudo bem.
Abracei meu amigo, que por estranhar meu ato, ficou com o corpo travado, mas demonstrou ter gostado do contato, embora o tivesse achado estranho. Despedimo-nos e fomos, cada um, seguir a própria vida.
Em casa, partilhei a experiência com minha companheira e ela me falou:
- Viu como o Amor atua?
- É surpreendente!
- Pena que a maioria das pessoas se alimenta das guerras e dos conflitos. Já pensou se todos os atritos do mundo fossem resolvidos dessa forma?
- Seria o paraíso.
- Um dia será.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 24

Na manhã seguinte, ela me despertou cedo, dizendo:
- Vamos a Chitzen Itza. Vou lhe ensinar a rezar.
Chegando às ruínas, ela traçou um circulo com giz no chão. Nós ficamos dentro dele. Orientou-se pelo sol e colocou ao norte, uma bacia na qual derramou água mineral; ao sul, acendeu uma vela amarela; a leste, acendeu incenso de olíbano e a oeste, pôs uma linda ametista.
Depois me falou o seguinte:
- Oraremos nas sete direções. Além dos quatro pontos cardeais, incluiremos acima, abaixo e nosso coração. Entendido?
- Sim, mas como?...
- Calma. Você saberá
Ela pegou minha mão e me conduziu para o Leste, onde estava o incenso. Chegando lá. Pediu que eu repetisse o que ela dizia. E eu o fiz:
- Desse quadrante Leste, saúdo o elemento Ar e evoco os Espíritos do Vento, pedindo que Eles me deem uma Orientação Criativa para esse dia.
Poucos instantes após termos falado, uma ventania estranha nos envolveu e dentro da minha cabeça, eu ouvi: Respeitar suas reais necessidades e segui-las é o passo principal no sentido de viver de acordo com os ciclos naturais. Coma quando tiver fome, beba quando tiver sede, durma quando tiver sono, copule quando sentir desejo.
Depois fomos para onde estava a ametista e falamos:
- Desse quadrante Oeste, saúdo o elemento Terra e evoco os Seres Guardiões desse Elemento, que me mostrem o que preciso transformar para me libertar.
Eles disseram: Procure o menino que você agrediu, peça perdão a ele e lhe ofereça algo que o estimule a mudar de vida.
Internalizei o que me foi transmitido e em seguida, fomos para o Norte:
- Desse quadrante Norte – ela disse e eu fui repetindo – saúdo o elemento Água e evoco A Força das Águas para que me mostrem um desafio para este dia.
Ouvi em minha mente: Melhor deixar essa mania infantil de querer agradar a todo mundo. E agora que sabe que não há inferno nem céu, dê-se ao luxo de ser verdadeiro consigo mesmo.
Paramos diante da vela:
- Deste quadrante Sul, saúdo o elemento Fogo e evoco os Senhores Incandescentes para que me apóiem e cuidem de mim.
Labaredas de Fogo me cercaram e me senti forte e mais confiante, com o que ouvi: Nós o apoiamos e o protegemos, mas lembre-se que nada disso faz efeito se você internamente não gerar seu auto-apoio, sua auto-proteção.
Fomos para o centro do circulo, unimos o dedo indicador e o médio e os apontamos para baixo:
- Espíritos da 5ª Direção, alimentem-me com Poder.
Um raio vermelho saiu do solo e me tomou por completo. Senti-me imbatível e totalmente enraizado na superfície do planeta.
Depois apontamos nossos dedos juntos para cima:
- Espíritos da 6ª Direção, deem–me passagem livre para acessar as bibliotecas das dimensões mais elevadas.
Fui arrebatado por um raio verde que me permitiu acessar, num átimo, a diversas dimensões e suas fontes de conhecimento. A sensação foi puramente orgasmática!
Por fim, tocamos com os dois dedos em nosso coração, a 7ª Direção e fui tomado por uma sensação de amor tão grande que cai no solo entregue e profundamente emocionado.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 23


No dia seguinte, ela tinha que pegar um grupo de turistas e também precisava pesquisar e digitar um trabalho para entregar na escola. Eu me ofereci para fazer o trabalho. Emocionada, ela me beijou e foi cumprir sua missão.
Fui a um Cyber Café que ficava perto da casa, pus-me a pesquisar sobre Modo de Produção Feudal e depois de ter material suficiente, li, produzi um texto e o arquivei.
Saindo do Cyber, vi uma cena que me deixou atônito: um menino arrebatou a bolsa de uma senhora e saiu correndo. Instintivamente, sai em seu encalço. A ira que senti por vê-lo se apropriando de algo que não lhe pertencia e por ter se aproveitado do estado vulnerável da idosa para roubá-la, deve ter disparado minha adrenalina e aumentado consideravelmente minha velocidade, a ponto de eu conseguir agarrar o moleque.
Ao capturá-lo, eu me sentia um autêntico predador intimidando a caça indefesa e sem dó, bati no garoto. Bati e o ofendi. Ele chorava e implorava para que eu parasse, contudo quanto mais ele o fazia, mais estimulava meu sadismo e meu desejo de sobrepujá-lo e mostrar para ele quem era o mais forte. Até que a vitima dele chegou com um policial franzino e ela, chorando, me pediu que eu parasse de bater no menino, pois do contrário, poderia matá-lo.
Caí em mim e vi o guri ensanguentado, cheio de hematomas, caído no chão, chorando e me pedindo clemência. Olhei nos olhos cheios de dor do menino e vi a fome estampada neles, e vi carência e vi tanta dor, que me envergonhei. Bastava só ter recuperado a bolsa e retido o garoto, mas fui pior do que ele que se aproveitou da fragilidade da senhora para roubá-la, pois me aproveitei de vulnerabilidade dele para molestá-lo fisicamente.
Ensandecido, fugi daquele lugar. Queria fugir de mim mesmo, mas aonde quer que eu fosse, a fera que eu tinha dentro de mim estaria junto. Corri até a casa e me refugiei. Tomei uma ducha e chorei por horas tendo a imagem do menino violentado por mim na minha mente. Eu queria pegá-lo no colo, dar-lhe carinho, amor, comida, um lar, estudo... Eu me sentia culpado e queria me redimir. Eu sabia que não só ele, não só os pais, não só a conjuntura, mas que também eu era responsável pelo fato de ele estar roubando.
Adormeci. Um sono pesado e cheio de pesadelos. Devo ter despertado todos os meus demônios com aquela atitude brutal. Logo eu que estava tendo acesso a tantas experiências maravilhosas, a tanto conhecimento, a tanto amor?...Logo eu, o ex-padre, o peregrino, o andarilho, o cigano?...Logo eu, que tanto defendi os menos favorecidos, os excluídos?... Que diabos eu era afinal? Anjo ou Demônio?
 Quando Chencha chegou, me atraquei com ela e tive seu colo. Chorei mais ainda e ela me permitiu chorar até que eu conseguisse secar minhas lágrimas e me sentisse melhor. Contei-lhe o que havia ocorrido. Ela ouviu, refletiu, sorriu para mim e disse:
- Acho melhor você se perdoar. O que foi feito, já está feito e ficar com essa culpa não é interessante. É totalmente contraproducente. Faça dessa dor de remorso a grande lição para adoçar seu instinto de justiça e nunca mais cometer esse delito contra você mesmo, que é a parte mais ferida na história.
- Não entendo.
- Mais cedo ou mais tarde todo agressor sofre a ação que infligiu a alguém. Ou pela própria consciência, ou por outro justiceiro impulsivo.
- Eu jamais imaginei que fosse fazer isso de novo.
- Aconteceram outras vezes?
- Muitas. Principalmente na infância e na adolescência. Sempre tive uma tendência muito forte de fazer justiça com as próprias mãos e quando via alguém sendo ultrajado ou humilhado, me dava um troço que eu só faltava matar o agressor. Depois que entrei no seminário, tratei de conter esse ímpeto e o fiz com tanto esmero que já o julgava extinto. Ledo engano! Quem sou eu, Chencha? O que posso fazer para viver com esses dois que vivem em mim?
- Assuma sua polaridade.
- E continuo sendo justiceiro?
- Não é isso. Entenda. Há uma grande diferença entre sermos polares e sermos duais.
- Como assim?
- Quando nos prendemos à dualidade, as nossas oposições se contrapõem e isso nos anula. Não aceitamos que nossa luz e nossas trevas possam interagir e conviver bem. Não nos integramos com nossa sombra e como não podemos nos equilibrar numa perna só por muito tempo, desabamos. O ideal é que interiorizemos e aceitemos nossos pólos, pois assim nossas diferenças, ao invés de se contraporem, passarão a se complementar e assim nos tornaremos seres completos, nos libertaremos da dualidade. Aceitar a polaridade é como se alicerçar sobre as duas pernas.
- E como faço isso?
- O primeiro passo é aceitar a polaridade. Você a aceita?
- Aceito.
- Jura que nunca mais tentará ser apenas bonzinho e encarará de frente suas maldades?
- Sim. Juro.
- Bom menino. Então considere que todos os seres são extensão de você mesmo e que por maior que seja o conflito, você deve encontrar um ponto de harmonia entre você e o outro. Nunca destrua a vida de ninguém para realizar seus desejos.
- Isso é forte! Sabe de outra coisa que me confunde?
- Diga.
- Embora eu tenha me desapegado de toda uma vida que construí, temo que não consiga meios de subsistência no futuro. Ainda tenho algum dinheiro, mas não trabalho e quando a gente não trabalha, dinheiro se esvai e não volta.
- Já vi muito trabalhador se acabando e perdendo dinheiro... Até mais do que andarilhos...Relaxe, cigano! O que é necessário sempre estará à mão. Só o que não o for, será tirado de você.
- Isso na teoria é muito belo, filosófico e fácil.
- Conecte-se com tudo que tem afinidade com você e o mundo lhe pertencerá, amigo. Nada do que você realmente necessite lhe faltará.
- Como lidar com meu instinto de justiça?
- O verdadeiro poder nos torna sensíveis com relação aos outros e nos confere gentileza, diplomacia e imparcialidade. Tudo isso faz do verdadeiro poderoso, um ser Impecável, uma Alma Excelente, um Ser Elegante que saberá bem servir, por saber ser realmente político.
- Como posso lidar com minhas aptidões, com meus dons para exercer meu poder?
- Cada um de nós veio para criar algo que beneficiará a nós mesmos e a outrem. O Universo sempre fornecerá as formas que usaremos para prover o outro com nossos “milagres”. Ancore no presente, Gilberto. É tudo o que você tem.
- Te amo, mulher!
- Te amo, homem.
Dormi como uma criança cansada após brincar todo o dia na praia da existência.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 22


À noite, preparei uma gostosa refeição e vinho para me refestelar com minha amada. Jantamos à luz de velas e vivemos um clima de encanto e romantismo:
- Como você lida com os seus sentimentos? – Ela me perguntou.
- Engraçado! Embora eu seja muito sensível, nunca parei para refletir sobre isso.
- Hoje a vida te deu um grande presente, colocando em seu caminho o médico e o vendedor de lanche. A Terra está disposta a nos dar esses presentes a todo momento e para que possamos desfrutar plenamente deles, devemos estar enraizados, sabe o que isso significa?
- Não.
- Precisamos nos escancarar para toda a imensidão dos nossos sentimentos. Só assim, ancoramos plenamente no planeta.
- Explique-me melhor.
- Por exemplo, antigamente eu usava a máscara da fortaleza...
- Como assim?
- Quando meu pai morreu, eu tinha 12 anos. Ficamos eu, minha mãe e meus três irmãos que na época tinham 10, 9 e 7 anos de idade. Para ajudar minha mãe a tocar a vida e criar meus irmãos, tive que amadurecer muito cedo e me tornei “o homem da casa”. Comecei a trabalhar cedo para ajudar nas despesas, estudava, ajudava a minha mãe com as encomendas de doces e salgados, ajudava meus irmãos na escola e ainda cuidava de educá-los e orientá-los. Tudo isso gerou em mim essa ilusão de que eu tinha que ser forte o tempo todo. Os quatro passaram a depender da minha energia e para não frustrá-los, para suprí-los sempre, passei a negar toda a minha fragilidade, todos os meus limites, todas as minhas dores. Eu dava colo para todo mundo; mas não havia colo para mim, porque eu era a forte.
- Eles moram aqui?
- Não. Vivem na capital. Todos vivíamos lá, mas não suportei carregá-los em minhas costas, surtei e vim embora para cá quando tinha 21 anos, há 14 anos atrás.
- Como foi isso?
- Os anos passaram e eu fui aguentando. Minha mãe quase sempre depressiva; Manuel e a dependência alcoólica, Gustavo e Paco eram bons, mas me sugavam emocionalmente. Fui me travando, me anulando, negando a mim mesma, até que um dia, eu tinha 20 anos, explodi. Fiquei doida, fui internada num manicômio e permaneci lá uns três meses. Foi bom que me doparam tanto, que eu só vivia dormindo. Acho que repus em noventa dias tudo o que perdi em oito anos.
“Saí de lá ainda meio aluada, mas estável. E foi muito interessante haver chegado em casa e ter constatado que todos souberam sobreviver sem mim. Comecei a fazer terapia com um Xamã, com o objetivo de resgatar minha individualidade, reprogramar minha vida e dar uma guinada. Eu havia trancado tanto meus sentimentos para sustentar minha família que emperrei minha vida e perdi a noção do meu tempo e do meu espaço no mundo. Fui fundo em mim mesma, assumi meus sentimentos, encarei minhas dores físicas e psíquicas, aprendi a orar com as Sete Direções”...
- Como é isso?
- Depois eu vou te ensinar. E num belo dia, resolvi deixar de cuidar da vida deles e passei a cuidar da minha. Vim embora para cá. Por amor a mim mesma, Gilberto, optei por abandonar as pessoas que eu mais amava, porque eu precisava assumir minha existência. Às vezes, isso é necessário.
- E hoje?
- Hoje nos damos bem. Cada um na sua. De vez em quando vou lá ou alguns deles vêm aqui. Estamos todos vivos e bem.
- E o Xamã que te ajudou a se reestruturar? Como se chamava?
- Ele se chama Coiote Vermelho. É um andarilho como você. Deve estar em algum lugar da Terra, se é que não já partiu para outro planeta.
- Que mais você aprendeu com ele?
- Tantas coisas... Mas têm umas mais marcantes. Teve um dia em que fui fazer uma sessão com ele. Eu estava com o pé enfaixado devido a uma entorse. Quando entrei em sua casa, ele estava fumando seu cachimbo, olhou-me com seus olhos sérios e brilhantes e me perguntou: “Que foi isso?”. Sem graça, respondi o que havia acontecido. Ao que ele questionou: “Quem pôs essa coisa em seu pé?”. E eu respondi que tinha sido o médico. Ele sorriu compadecido de mim e falou suavemente: “Cabe a você curar a si mesma, Chencha. A maioria de nós humanos tem essa mania besta de se adoecer, se quebrar e ir direto para um médico a fim de que ele faça o conserto que caberia a nós mesmos fazermos.”. Fiquei indignada com ele e retruquei dizendo que ortopedia não era minha especialidade, nem terapia holística, e era por isso que fui ao ortopedista, e estava fazendo tratamento com ele, Coiote. Sabe o que ele me disse e que me fez calar?
- Não!...O que ele disse?
- “Meu objetivo é fazer de você o que foi feito de mim. Você será sua própria Cura.”. Fiquei sem voz e me rendi aos seus ensinamentos. Aprendi de tudo um pouco para me curar e consertar o que eu mesmo quebro, ou limpar minha própria sujeira.
- Não sei lidar com minhas dores – confessei – Sempre fui treinado para suavizar a dor alheia e me ocupar dela, para esquecer o que me dói.
- Talvez por isso tenhamos nos atraído. Temos algo a aprender e ensinar, um com o outro.
- Como devo me relacionar com minha dor?
- Por que se apropria da dor com tanto afinco?
- Porque a sinto.
- O fato de assumí-la não quer dizer que tenha que ser tão vinculado a ela. Embora a dor seja uma grande mestra, quando necessária, não deve ser tão íntima. Quanto maior for o grau de evolução, menor será a dor. Ela só deve ser vista como o instrumento da Lei que nos orienta a andar certo. A partir do momento em que aprendemos com ela, é hora de abandoná-la e deixar a alegria entrar.
- Como você encara a dor?
- Que pergunta? – Rimos – Quando ela chega, me comunico com ela, pergunto o que quer me sinalizar e ouço sua mensagem. Aí me purifico, como e bebo o que me faz realmente bem, movo meu corpo e pesquiso em várias fontes os mecanismos de cura dos quais posso lançar mão. Aí me curo.
- Até com uma dor de cabeça insuportável você age assim?
- Por que não?
- Sei lá, um analgésico de vez em quando faz mal nenhum...
- Pode ser. Mas o grande objetivo das drogas é mascarar as mensagens do corpo. Elas fazem o problema de refém. O incomodo melhora, vem o alivio, mas a merda se recolhe para um calabouço mais profundo e sem tranca. Mais cedo ou mais tarde, ela vem à tona e vem mais forte.
- A humanidade é doente.
- Sim. Muitos optaram pelo caminho da doença. Ou por escolha cármica, ou por burrice mesmo. Toda doença física, por exemplo, vem de desequilíbrio energético. Se houver um trabalho corporal legal, desaceleração de ritmo e economia de compromissos, cura de traumas, aquietação mental e espiritualização profunda, te garanto que a saúde integral será garantida.
- E no caso de uma doença de nascença. De uma escolha cármica.
- Sempre há um meio de se atenuar a sintomatologia.
Então saímos para ver a lua. Estava cheia e linda. Abraçamo-nos e ficamos em silêncio, contemplando-a. Até que Chencha me perguntou:
- Que sente quando a vê?
- Hum! Magia... Vida. Sinto como se ela me guiasse...
- Não é “como se”. Ela realmente nos guia. Tudo que é vivo tem água e responde ao ciclo interminável da Lua.
- Explique-me isso.
- Odeio relógio. Com o advento da civilização e seu aparente desenvolvimento, o ser humano sentiu a necessidade de marcar o tempo conforme o ritmo louco das obrigações. Isso fez com que ele se distanciasse dos ciclos naturais, traísse a própria natureza, o próprio ritmo. O saldo disso é o stress, a doença, a depressão e outros lixos... Dividimos o tempo, despedaçamos nossa essência e isso ocasionou uma obsessão materialista que norteia nossa dimensão.
- Que podemos fazer para viver melhor?
- Muitas coisas, mas nesse caso. Se tivermos a coragem de nos libertar do consumismo, da mídia, dos padrões limitantes e usarmos o relógio só para nos basear em compromissos que possamos arcar sem exaustão, poderemos nos reintegrar com a Lua e prestarmos mais atenção a sua sabedoria. A cada Lua Nova do mês, nasce uma nova história que se desenvolve, enquanto ela é Crescente, e chega ao clímax quando ela está Cheia. Depois ela se conclui na Minguante e morre, para que novas histórias possam surgir e ser vividas.
- Isso é lindo!
- Isso é a Lei.
Tivemos uma noite fantástica. Fizemos amor e dormimos felizes, no quintal, iluminados pela Luz que explodia de contentamento.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 21


Primeiro observei um homem vestido de branco, pelo tipo parecia ser médico. Estava alquebrado, sentado num banco, abatido, com a testa franzida, triste. Havia uma insatisfação estampada em todo o seu ser. Aproximei-me dele:
- Bom dia!
- Bom dia! – Murmurou.
- Posso me sentar aqui?
Ele olhou outros bancos na praça:
- Mas há tantos bancos vazios...
- Se eu me sentar com você vou incomodá-lo?
- Talvez até não... Estou precisando desabafar.
- Está mal?
- Péssimo.
- Por quê?
- Falta de tesão. Fiz o curso de medicina não por vocação, mas por influência dos meus pais e amigos. Queria mesmo era ser ator, mas meteram na minha cabeça que não daria dinheiro, não daria certo... Escolhi medicina, fiz o curso, me sacrifiquei, me formei, já tenho sete anos exercendo a profissão, ganho razoavelmente bem, mas não sou feliz na profissão.
- Mude – falei – você vai passar o resto da vida frustrado só porque conseguiu alguma estabilidade?
- Você não percebe o quanto é difícil! Sinto-me escravo do sistema. Seria loucura eu deixar tudo nesse momento e seguir um sonho de juventude. A vida adulta não reserva espaço para sonhos, mas sim para a sobrevivência.
- Que crença absurda! – Fiquei indignado – agora que você está capitalizado pode bancar seu curso de Artes Cênicas e se realizar. Pode ir fazendo a transição aos poucos e se proporcionar ainda uma continuidade de vida feliz.
- É fácil falar quando se está de fora!
- Fui padre no Brasil. Larguei tudo e hoje sou andarilho.
- Isso é louvável, mas eu não tenho coragem. Não tenho outra alternativa senão continuar vivendo dessa forma.
- Lamento!
- Eu também.
O homem se levantou e partiu. Enquanto ele se afastava, eu o contemplava: andar pesado, corpo triste, vida sem graça. Tive uma imensa compaixão por aquele ser, porém isso não mudava os fatos se dentro dele havia nenhuma disposição de se fazer feliz.
Alguns instantes depois chegou um homem vendendo lanche. Era moreno, belo e tinha um olhar cheio de vida. Ofereceu-me seu produto e eu lhe perguntei:
- O que tem aí, amigo?
- Pão de queijo.
- Quero um.
- Lindo dia!
- Com certeza.
Ele me deu o alimento cheiroso e fofinho. Fiquei com água na boca. Paguei, ele me agradeceu sorrindo e eu tirei um pedaço do pão... Delicioso!
- Hum!
- Gostou? Eu mesmo que faço.
- Excelente!
- Há quanto tempo vende lanche, amigo?
- Creio que há... Oito anos.
- Gosta do que faz?
- Gosto demais.
- Não pensa em outra coisa?
- Como assim?
- Algo melhor, que lhe dê mais dinheiro, mais segurança? – Eu o estava testando.
- Não. Sou feliz com o que faço. Eu imprimo meu ritmo na minha produção e venda. Além disso, forneço para algumas escolas. Com o que ganho, pago minhas coisas e ainda tenho tempo para curtir a vida. Que mais posso querer?
- Como se chama?
- Alejo e você?
- Gilberto.
- É um prazer conhece-lo, Gilberto
- O prazer também é meu, Alejo.
- E lembre-se: qualquer coisa que façamos que nos dê realmente prazer, em todos os sentidos, é a coisa certa a ser feita. O ser humano pleno é antes de tudo louco e corajoso, pois deve ter o desprendimento e o bom-senso de quando perceber que algo que faz o aborrece tremendamente, deve deixar o que incomoda e se experimentar no que será motivo de gozo. O tédio e a fascinação não nossos grandes mestres. O tédio continuo sinaliza que é tempo de mudar e o que nos fascina, que é tempo de permanecer onde está. A vida é muito curta para que percamos tempo sofrendo. E observo que há muita gente besta que emprega toda energia no sofrer... Já pensou se essa mesma gente empregasse esse mesmo quantum em gozar?
Olhamo-nos por uns instantes. Eu estava maravilhado diante daquele homem, daquele deus. Abraçamo-nos e ele se foi, deixando em mim uma das lições mais importantes que aprendi em toda minha vida. 

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 20


Voltei para a cela. Meus companheiros já estavam dormindo. Deitei em meu colchonete e comecei a pensar na minha história. O que meus ex-paroquianos diriam se me vissem naquelas condições? Ri e achei tudo muito inusitado. A cela estava fresca e foi muito intensa a sensação interna de liberdade, mesmo estando atrás das grades. Meu espírito era muito mais do que aquele estado de confinamento. Lembrei-me dos ensinamentos de Emmanuel e tive um importante insight: Onde quer que eu pudesse estar e em qualquer condição, nada afetaria meu ponto de paz interior e minha liberdade interna.
Adormeci e sonhei com meu pai. Por projeção astral, fui à dimensão em que ele e os ciganos estavam e nosso reencontro foi emocionante:
- Salve, Cigano! – Disse-me ele abrindo os braços.
- Salve, Meu Pai!
Envolvemo-nos num abraço gostoso e depois cumprimentei a todos.
- Agora você já sabe que nada pode aprisionar uma Alma, quando ela é por natureza, livre – disse-me meu pai.
- Sei sim.
- Como está se sentindo?
- Crescendo. E você?
- Também. Assim como todos eles.
Vi então, além dos seis que estavam com ele, surgirem inúmeros ciganos e participei de uma festa cigana inesquecível.

Pela manhã, fui acordado por um soldado e fui solto. Na porta da delegacia, Chencha me esperava com aquele sorriso que nenhuma outra mulher no mundo tem. Levou-me a uma lanchonete, comemos alguma coisa e ela me perguntou:
- Como foi passar a noite na cadeia?
- Libertador.
Rimos.
- O delegado conversou comigo depois da conversa que teve com você.
- Ele é gente boa!
- Que quer fazer hoje?
- Voltar a Chitzen Itza – respondi sem pestanejar – mas antes, quero um lugar para tomar banho.
Chencha me hospedou em seu quarto e sala. Tomei um banho gostoso, ela foi para a faculdade e após ter tirado uma soneca, voltei para as ruínas da cidade sagrada. Cheguei ao cimo do Caracol e ouvi turistas conversando, pareciam ufólogos, sobre o fato de ali ter sido usado como observatório. Cada vez mais eu ia me interessando pela cultura Maia.
À tarde, minha nova amiga chegou com um grupo pequeno de turistas e decidi me incorporar ao grupo e me deixar guiar por aquela mulher fascinante. Era interessante a forma de ela contar as histórias do lugar e do povo que ali viveu! Tinha um quê de mágico, de sedutor que ia me envolvendo a cada segundo.
Num momento em que os turistas tiravam fotos, ela veio falar comigo:
- Aproveitando a viagem, moço bonito?
- Mais você que a própria viagem.
- Está se apaixonando por mim?
- Não. Já me apaixonei.
- Coincidência. Penso que a recíproca está existindo.
Ela me beijou suavemente e voltou para o grupo.
Final da tarde, ela me falou que iria deixar o pessoal em Cancun, mas que voltaria com uma barraca para acamparmos ali naquela noite. Achei a ideia fantástica e por lá mesmo fiquei.
Após algumas horas, minha amiga voltou num fusca velho e simpático. Armamos a barraca, fizemos uma fogueira, comemos frango com arroz, tomamos vinho e para mim foi extasiante vê-la tocando violão e cantando histórias e lendas maias.
A noite estava linda. Não havia lua e o céu estava todo estrelado. A garrafa do vinho estava na metade quando nosso fogo interno aumentou e não deu outra, fizemos amor abençoados pelas estrelas, pela noite e pelo céu.
Relaxei tanto, que me vi boiando num oceano infinito, completamente entregue. Em seguida, vi que Chencha estava ao meu lado, também boiando. Pegou minha mão e telepaticamente me convidou para fazermos uma viagem. Claro que fui:
- Sabia que você tem quatro cérebros? – perguntou-me telepaticamente, enquanto boiávamos.
- Não. Sempre soube de um só – respondi.
- Quatro cérebros formam um só.
- Como assim?
- Nós humanos temos o cérebro Réptil, o Mamífero, o Hominal e o Neocortical.
- Não entendo...
- Deixe-me mostrar-lhe as quatro faces do seu cérebro.
Ela tocou na base do meu crânio e eu me tornei um lagarto verde e belo. Foi muito interessante perceber as coisas a minha volta como um réptil! Meu sangue era frio e através da minha nova pele, eu percebia o mundo de outra forma: o vento, o sol, a temperatura repercutiam de forma diferente em mim. Meus instintos eram mais aguçados e minha adesão ao solo bem maior do que a que eu tinha como humano. Um instinto de predador começou a se formar em meu interior e eu desejei ardentemente caçar algum organismo vivo. Percebendo o que se passava comigo, Chencha quis me conter e minha reação foi lançar minha cauda contra ela, que se desvencilhou rapidamente. Como réptil, senti que estava perdendo minha humanidade, e se a ataquei não foi porque quis molestá-la; só estava querendo me defender.
- Gilberto, você é um Homem – ela disse mirando meus olhos.
Voltei à condição humana.
- Bem-vindo ao mundo dos humanos, Dr. Lagarto.
- Nossa! Perdoe-me... Foi difícil controlar...
- Eu sei. Já passei por isso. Não se culpe; é puramente instintivo. Quer conhecer o seu cérebro mamífero?
- Quero.
Ela tocou num ponto acima do cérebro réptil e aí me vi numa savana, na pele de uma majestosa tigresa amamentando meus três filhotes. Meu sangue era quente. Senti um cheiro familiar e fiquei em alerta. Tinha que proteger minhas crias! Apurei minha visão e a longa distância, identifiquei a presença de um veado. Naquele momento, caçá-lo não era uma prioridade e ele não representava ameaça alguma para nós. Em seguida, senti outro cheiro bem característico. Vi ao longe um macho, meu companheiro, e me alegrei com a iminência da sua chegada, pois me sentiria mais protegida e aquecida. Senti depois um cheiro estranho e vi uma mulher que estava bem próxima a mim. Rosnei para ela, pensei em meu filhotes! Ela me parecia inofensiva, mas...
- Gilberto!
Estava novamente boiando com Chencha no oceano:
- Foi mais fácil voltar! – Exclamei.
- Você estava linda de mamãe.
- Foi gratificante. Senti-me tão poderoso!
Então ela tocou no meio da minha cabeça e me vi cercado de infinitos blocos. Cada um deles representava um pensamento, um juízo, um discernimento, uma análise, uma síntese, um registro, uma lembrança, uma imagem, um sentimento, um desejo, um sonho. Era tudo tão complexo, que me senti zonzo, sufocado por tanta humanidade. Eu estava em contato com meu cérebro humano. Então alguns blocos começaram a se fundir com outros e milhões de sons e imagens se misturaram numa babel alucinante que me fez entrar num processo de aceleração vibracional tão intenso, que comecei a me desintegrar e foi aí que ela tocou em minha testa...
Senti-me explodindo de ideais. Percebi todo o meu potencial criativo e revi muitas coisas que construí, projetos que idealizei, movimentos que concretizei. Além disso, vi o que ainda estava por realizar e fiquei emocionado. Sempre me amei e soube que era um ser capaz, mas jamais tinha percebido o quanto empreguei, até ali, a minha energia em empreendimentos substanciais para mim e para o próximo. Este foi o contato com meu quarto cérebro.
Voltei a mim tranquilamente.
Não mais boiávamos no vasto oceano; estávamos no aconchego da nossa barraca.
- Como foi isso? – Perguntei aturdido.
- Silêncio, amigo. Descanse. Durma. Amanhã conversaremos.
Acordamos cedo e voltamos para Cancun. Durante a viagem, conversamos:
- Quem é você, Chencha? Como conseguiu fazer aquilo?
- Além de estudante de História e Guia Turística, sou uma Sacerdotisa, Gilberto e fui avisada da sua chegada. Disseram-me também que caberia a mim ensinar-lhe a se conectar com a Terceira e a Quarta Dimensões, já que você já acessou a Primeira e a Segunda com sucesso.
- Quem lhe disse? Posso saber?
- Claro que pode. Richard. Assim como você, como Clara e como eu, ele também é um Sacerdote de si mesmo.
- Vocês têm um sistema de comunicação especial? Como isso funciona?
- Assim como as Falanges Trevosas têm sua rede de comunicação e atuação, nós da Fraternidade Branca temos também a nossa rede. Estamos todos interligados a fim de cumprirmos nossa missão.
- E quem vencerá nessa guerra?
- Não se trata de vencer ou perder. Não é uma guerra. Cada um ficará onde deve e cada ser será livre ou não para optar. Nada é completamente mau ou bom. Depende da intenção.
- Tudo bem... Como será minha conexão com a Terceira Dimensão?
- Já está sendo. A 3D é tudo isso que nos cerca. É a superfície da Terra. Zona em que as dimensões físicas e não físicas se entrelaçam. Não vou poder te dar muita atenção hoje, porque tenho mil coisas para fazer entre a faculdade e meu trabalho. Mas como você já está na 3D, o cotidiano será seu grande laboratório. Observando ou interagindo, você tomará consciência de muitas chaves para melhor viver aqui na Terra, e em qualquer lugar. Quem quiser conhecer o Universo tem que passar um tempo aqui.
- Por quê?
- Porque de alguma forma aqui é uma estação para qualquer lugar do Infinito. Aqui é a Biblioteca Viva de todo o Cosmos.
Fomos para casa, tomamos banho, comemos alguma coisa, ela se despediu de mim e se foi. Eu resolvi sair e parei numa praça. Sentei num banco e pus-me a contemplar as pessoas, vendo em cada uma, um mestre em potencial para me ensinar lições da vida.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Cigano Peregrino - 19


CAPÍTULO 3

CHITZEN ITZA - MÉXICO

“Gracías a la vida que me ha dado tanto”.
Violeta Paras.

Chegando diante das ruínas da antiga cidade de Chitzen Itza, senti um profundo arrepio no corpo. Sensação estranha de já haver estado ali. Senti saudade de Clara e Richard. Seria bom se os tivesse comigo naquele momento, mas a vida é assim: não se pode arrastar todos que pertenceram ao nosso passado, ao longo da trajetória. Vida é passagem, é trânsito. Fica quem tem que ficar; parte quem tem que partir.
Juntamente com alguns turistas e pessoas do local, iniciei minha escalada nos degraus de El Castillo, a pirâmide mais famosa daquele rincão maia-tolteca. A subida foi árdua e cansativa. Parei algumas vezes para descansar, só que o ímpeto de chegar ao cume era maior que a fadiga e toda a minha energia gritava para ser dirigida para este foco.
Gente tirando fotos, gente conversando, tocando instrumentos musicais, falando de magia e discos voadores, Calendário Maia e outras coisas que eu ouvia à medida que passava.
Chegar ao fim foi um prêmio. A vista, a energia, tudo ali deixou-me profundamente emocionado e eu chorei.
Foi então que uma bela mexicana me ofereceu um lenço, esboçando um dos sorrisos mais lindos que já vi em vida:
- Por que chora? – Perguntou-me em seu idioma.
- De emoção – falei enxugando o rosto e os olhos – Obrigado pelo lenço.
- Como se chama?
- Gilberto e você?
- Chencha.
- É um prazer conhecê-la – estendi a mão e ela a apertou.
- Encantada! Que faz aqui?
- Não sei ao certo, Chencha. Sou um peregrino.
- Todo peregrino busca alguma coisa ou alguém, ou a si mesmo.
- Acho que busco tudo isso.
- É um peregrino megalomaníaco.
Rimos. Adorei o bom humor da minha interlocutora.
- Digamos que sim. O que faz, amiga?
- Sou estudante de História e Guia Turística.
- Oba! – Exclamei – Sou um homem de sorte. Você pode me contar a história desse lugar?
- Posso, mas sugiro que nos sentemos.
Sentamos nos degraus da pirâmide e ela disse:
- A História do meu povo vem de muitos anos, quando os asiáticos tomaram posse da América do Norte e Central, encontrando há cerca de 2500 anos antes de Cristo uma civilização protomaia. A antiga e mística cidade de Chitzen Itza floresceu em pleno esplendor desta civilização e tinha como sacerdote o poderoso Kukulcan, que encarnava o Espírito da Serpente e detinha o poder sacerdotal e político na época, como qualquer faraó egípcio.
- E como a história desta civilização aconteceu? – Perguntei.
- Em cinco períodos. O primeiro foi o Formativo, que se estendeu de 500 a.C. a 325 d.C.. Naquele tempo, fizeram algumas esculturas de argila demonstrando traços do meu povo. Depois veio O Período Clássico, no qual os Maias se firmaram como povo, buscando sua identidade e purismo nacional e racial, não se baseando em influências externas. Depois houve um grande florescimento cultural e científico que projetou nosso povo na História Humana, mas misteriosamente todo aquele potencial cultural feneceu e os templos foram abandonados.
- Por quê?!
- Talvez não tivéssemos sabido lidar com tanto poder... Esse período do qual acabamos de falar foi de 325 d.C. ate 925 d.C. Daí veio o Período de Transição, onde nossa liberdade se deteriorou e a cultura Tolteca se apossou de nossas almas. Entre 975 e 1200, se iniciou o Período Maia-Tolteca no qual ficamos sob forte influência dos Toltecas, que implantaram o mito da Serpente Quetzalcoatl. Nossa essência foi se perdendo com a chegada de outras gentes e entre 1200 e 1540, nossa cultura naufragou no mar dos conflitos e das alianças com povos que desrespeitaram nossos costumes.
- E onde entram os espanhóis nessa história?
- É exatamente agora que entram, mas as cidades cerimoniais já estavam abandonadas. Muito já havia se perdido.
- Isso é triste!
- É. Mas seria bem pior se ninguém houvesse guardado e protegido nossa história e costumes.
- Quem guardou?
- Nós, os Descendentes.
- Você poderia me ensinar algumas dessas coisas? Alguns desses tesouros?
- Poderei fazê-lo, desde que você passe no teste.
- Que teste?
- Aquele que demonstrará se você realmente é merecedor do que eu tenho para lhe falar.
- Em que consiste esse teste?
- O que você faria de absolutamente insano que colocasse em cheque sua intimidade neste momento?
Pensei um instante e respondi:
- Ficaria nu.
- Fique.
- Como?!
- Esse é o teste.
- Vai ser um vexame. O que estas pessoas vão pensar? Poderei ser preso por atentado ao pudor.
- Sem Streaptease, sem ensinamentos.
Tirei minhas sandálias, minha camisa e quando ia desabotoando as calças, ela me falou sorrindo que eu poderia parar por ali, pois já havia sido aprovado no teste, pelo fato de ter posto o conhecimento acima dos meus próprios limites. Aquilo fazia de mim um merecedor legitimo. Só que não sei o que me deu e quando me vi, já estava completamente despido, Chencha chocada tentava me vestir a roupa e alguns policiais se aproximaram.
Fui levado para Cancun e me detiveram na cadeia, mas fui bem tratado, embora fosse estrangeiro e só passei uma noite na cela que tinha um traficante e um ladrão, respectivamente Germano e Benício:
- Por que está aqui, Brasileño? – Indagou-me Germano.
- Tirei a roupa lá no alto de Chitzen Itza. Atentado ao pudor.
- É maluco! – Exclamou Benício – Por que fez isso?
- Foi um teste. Uma Guia me disse que só me passaria os ensinamentos Maias se eu ficasse nu. E foi o que eu fiz.
- E aí, onde está a mandante do crime? – Questionou-me o outro sorrindo.
- Não sei. Espero que ela venha me soltar.
O soldado estava ouvindo a conversa e foi falar com o delegado. Logo depois fui chamado à sala da autoridade. Fui escoltado pelo soldado carcereiro sem desconforto e parei diante do delegado.
- Sente-se – falou friamente.
Quando o soldado saiu, os olhos do delegado se acenderam. Ele não poderia deixar transparecer aquela emoção diante de terceiros, e ficou mais aliviado:
- Por que tirou a roupa em público?
- Para obter conhecimento.
- Foi um teste?
- Sim.
- Quem lhe testou?
- Não posso dizer.
- Por quê?
- Preservação do sigilo.
- Se me disser, eu te solto.
- Não adianta. Não vou dizer.
- Então você é confiável?
- Eu sou.
- Tudo bem. Como já está tarde, durma aí na cela mesmo e amanhã de manhã você vai ser liberado.
- Obrigado, delegado.
- Pode me chamar de De la Fuente.
- Obrigado, De la Fuente.
- Disponha, amigo.
- Por que está me ajudando?
- Porque sou um Maia.