quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Cigano Peregrino - 34

Quando despertei, estava na cama de Coiote Vermelho. Sentado na poltrona, ele me olhava docemente e sorriu para mim quando me viu acordado. Retribui-lhe o sorriso e com um gesto, eu o convidei para se juntar a mim. Ele atendeu ao meu convite, despiu-se, despiu-me carinhosamente e nos tornamos Um.

O tempo foi passando. Fazer amor com Coiote era tranquilo e diferente de tudo o que eu havia vivido até ali. Ele era doce, leve e a cada dia o amor que sentíamos um pelo outro crescia. Continuei amigo de Bruce e Jéssica, mas passei a manter certa distância deles, a fim de me preservar. O dinheiro que eu ganhava dava para viver bem e outra parte eu guardava para a viagem.
Certo dia, pensando na angústia que seria viajar sem Coiote, eu lhe propus:
- Por que não viaja comigo?
Ele riu, tomou um gole do chá, afagou-me os cabelos e me olhou com doçura:
- Bem que eu queria, mas nada é definitivo ou para sempre.
- É horrível sempre ter de deixar alguém...
- Qual será o próximo lugar depois daqui?
- Sintra.
- Tudo bem. Dessa vez você não deixará ninguém, mas será deixado.
Eu ri curioso e ele continuou:
- Vou contigo a Sintra, passarei uns dias em sua adorável companhia e depois voltarei para cá. Que me diz?
Sorri e gostei muito da ideia.
- Enquanto isso, vivamos o presente e o que ele tem a nos oferecer.
- Concordo.

Dias depois, eu iria folgar e ele me propôs que fizéssemos um passeio. Queria que eu conhecesse um amigo dele em Auckland e é claro que topei.
Pegamos um avião em Sidney e duas horas depois estávamos chegando ao nosso destino. Pegamos um táxi e fomos parar num local interessante num bairro da cidade. Vi algumas pessoas bonitas com traços indígenas e perguntei-lhe se aquele lugar era uma reserva Maori, ao que ele me respondeu:
- Digamos que sim. Aqui é um Marae ou Casa Ancestral. É um dos vários redutos Maori que existem por aqui.
Ele perguntou algo em Maori a uma bela mulher que sorriu e indicou-lhe uma direção.
- Que perguntou a ela?
- Onde nós poderíamos encontrar o Sr. Apirana?
- É seu amigo?
- Sim.
Chegamos a uma sala espaçosa, da qual saíam cerca de vinte crianças alvoroçadas Maori de uma aula. Topamos com um senhor belo e respeitável sorrindo para nós. Aproximamo-nos dele, que recebeu Coiote com um afetuoso abraço e depois lhe perguntou em inglês:
- Esse é o Cigano de quem você me falou?
- Sim.
- Como vai, Cigano? Eu sou Apirana. É uma honra conhecê-lo.
- Sinto-me igualmente honrado, Sr. Apirana.
Abraçamo-nos e foi como se nos conhecêssemos havia anos. Por ter desenvolvido certa habilidade de aprender línguas do planeta quando estive nos mundos subterrâneos, no contato com o índio, na interpenetração de nossos corpos, acessei em minha memória celular as lembranças daquele idioma e quando me dei conta, estava falando Maori:
- Penso que podemos nos comunicar em Maori.
Ele sorriu e exclamou:
- Interessante! Fala tão bem que parece ter tomado anos de aula ou já ter nascido um de nós. Aprendeu bem a acessar a memória da Terra.
- Eu não lhe disse que ele era bom? – Falou-lhe Coiote.
Sentamo-nos e Apirana prosseguiu:
- Estou muito feliz porque vejo que nosso esforço incansável de preservar a língua e a cultura do meu povo está dando maravilhosos frutos. Aquelas crianças que vocês viram sair daqui falam o inglês, mas tem orgulho de saber falar o idioma dos ancestrais delas.
- Você ensina há muito tempo, não é, amigo? – Perguntou-lhe Coiote.
- Sim, Coiote. Nasci para isso, mas que surpresa boa tê-los aqui. O que os traz a nosso Marae?
- Como eu te disse, Gilberto é um Peregrino e está fazendo o roteiro das Sete Cidades. Por isso foi parar em Sidney. Em breve, estará partindo para Sintra e penso que vir à Nova Zelândia e não conhecer a cultura Maori é o mesmo que não vir. Por isso eu o trouxe aqui.
- Bom, Coiote. O que quer saber do meu povo, Peregrino?
- Tudo o que o senhor puder me mostrar.
- Para inicio de conversa, nada de formalidade comigo. Pode me tratar por “você”. Nasci em Whakatohea, na Ilha do Norte, e sou descendente dos Opotiki. Desde que me entendo por gente, venho trabalhado pela preservação da cultura Maori, bem como da inserção do meu povo na civilização e na modernidade.
- Os Maori sempre estiveram aqui?
- Não. Chegamos aqui há mil anos atrás em nossas canoas construídas para viagens de longa distância. E embora constituamos hoje apenas 14% da população neozelandesa, nossa língua e cultura possuem grande significado no estilo de vida do nosso país.
- De onde vieram? – Perguntei.
- Da Polinésia, cujos ancestrais são asiáticos, contudo estudiosos também dizem que viemos de regiões da América do Sul, do Norte, Israel, Egito, Índia e Grécia.
- De que regiões da América do Sul?
- Do Peru ao Chile.
- Fantástico! O que significa a palavra Maori?
- “Normal, natural, nativo” e este termo surgiu quando os europeus aqui chegaram, para nos distinguirmos deles, aos quais denominamos Pakena. Antes de eles pisarem aqui, vivíamos isolados em nossas tribos, com nossas coisas e ainda que tenham conspurcado muito de nossa cultura, foi sorte nossa terem nos descoberto só em 1830. O estrago que causaram aqui, portanto, não foi tão grande quanto nas colônias americanas. E não pense que com esse discurso eu seja totalmente contra eles. De jeito nenhum. Reconheço também que trouxeram para cá muitas coisas boas.
- Tenho profundo interesse pela cultura de cada povo que conheço – falei.
- Nossa cultura é riquíssima! O tradicional e o moderno caminham lado a lado. Temos o hábito de colocar tatuagens no corpo, e nosso folclore é cheio de esculturas, pinturas, danças, rituais, histórias, lendas, ciência e magia.
- Fale-me do hábito das tatuagens.
- Embora não cubramos tanto os nossos corpos como outros irmãos nossos do Sul de Oceano Pacifico, somos conhecidos por nossas tatuagens.
- Você tem alguma?
- Tenho algumas no corpo, mas os Maori sempre trabalharam de uma forma incomum com elas: o costume manda que se tatue o rosto. O que usávamos em madeira, passou a ser usado em nossas faces e com a chegada dos europeus que trouxeram os metais, a arte ficou mais incrementada. Muitos de nós tinham o costume de remover a cabeça de nossos chefes, depois de mortos, e preservá-las. Isso significava honra. Cada tatuagem tem sua razão de ser. É uma marca para o resto da vida e por isso não deve ser desprovida de sentido. Quando os colonizadores se deram conta do nosso estranho costume, muitos colecionadores excêntricos do mundo quiseram possuir as cabeças tatuadas e isso deu inicio a um tráfico vergonhoso do que para nós era um costume honorável. A discórdia foi semeada e os Maoris lutavam entre si nas disputas por terra e as cabeças das vítimas desses combates tornaram-se mercadoria.
- É lamentável!
- Coisas da vida, meu rapaz...
- E hoje, como vocês vivem?
- Como você pode ver, bem. Tivemos que fazer ajustes para convivermos com a dominação européia. Tivemos que migrar do interior para a cidade em busca de emprego. Tivemos que abandonar a economia de subsistência que praticávamos nos campos, na caça e na pesca e aprendermos a controlar despesas e lidar com a vida urbana, constituindo organizações que visavam a ajuda mútua, no sentido de nos adaptarmos a novos costumes. Após 1960 com a febre do trabalho compulsivo, do desejo de lucro a qualquer custo e do consumismo, enchemos nossas casas de eletrodomésticos e nos iludimos gozando desse status, mas aí veio a recessão. Foi terrível! Mas vejo isso como aprendizagem: os desmandos da modernidade fizeram com que nos afastássemos de nossa sabedoria. A consequência deles foi a ruína e ela seria a ponte de um possível retorno às nossas origens. Não que voltássemos a ser o que éramos. Impossível! Mas passamos a nos esforçar para manter o equilíbrio entre o passado e o presente.
- Como isso aconteceu? – Perguntei interessado. A narrativa de Apirana era por demais sedutora. Ele era um excelente contador de histórias.
- Com a mudança da nossa cultura para o meio urbano, buscamos adaptar as tradições para as novas condições. Quando algum de nós morria, tirávamos todos os móveis da casa para que o defunto fosse posto nela e recebesse as últimas homenagens dos amigos e parentes. Finalizadas estas homenagens, alugávamos um ônibus para transportar o corpo para o campo a fim de o sepultarmos junto aos ancestrais.
- Dessa forma foram mantendo a permanência dos seus aspectos culturais mais queridos – conclui.
- Sim. Era muito bonito ver as pessoas se associando para arrecadar dinheiro e propiciar os funerais de volta ao campo. E assim como havia essa tendência gregária para rituais fúnebres, outros grupos começaram a se organizar no sentido de ensinar aos mais jovens as danças e cantigas tradicionais. Outros formavam grupos esportivos e a unidade Maori foi se tornando forte outra vez. Eventos artísticos e esportivos foram acontecendo e após eles comíamos e bebíamos, festejávamos e foi daí que surgiram os Maraes.
- E quanto ao artesanato?
- Toda colonização desorganiza a cultura já existente. Perde-se o referencial de uma língua-mãe, de uma identidade e de costumes que refletem a verdadeira alma de um povo. Só que nada é eterno e o fenômeno colonizador se inclui nisso. Muitos de nós têm ensinado à nova geração a trabalhar com a tecnologia da pedra e com a arte da tecelagem de fibras e a receptividade é excelente e comprova que a raiz de um povo colonizado pode superar a aparente força do colonizador. Basta esse povo querer.
- Fale-me de medicina Maori – pedi.
- É basicamente naturalista e também passada pelos antigos aos mais novos.
- O que os Maori pensam do futuro?
- Não pensamos no futuro e isso talvez se constitua um dos nossos principais choques com a cultura europeia. Vemos-nos sempre contemplando o passado, que é o que conhecemos. Para nós importa o passado e o presente. Através do passado, viajamos para o futuro, remando contra a maré.
- E o presente, Apirana?
- Nosso presente é viver o Pan-Tribalismo. Todas as Tribos numa só. E isso não se refere só aos Maori, mas à Aldeia Global que uns chamam Terra e eu chamo de Gaia.
- Tudo isso é multicultural. Sinto-me como se estivesse em meu pais! – Exclamei emocionado.
- E quem disse que você não está? E aquela sensação que você teve quando nos abraçamos. Estamos apenas nos reencontrando Homem dos Mil Caminhos. Você também já foi um Maori e sendo assim, ainda o é.
Fechei os olhos e me vi na pele de um guerreiro Maori numa performance ritualística magnífica em que simulávamos um combate e assustávamos o inimigo com nossas terríveis caretas e bravuras e por fim perguntei ao meu amigo:
- E quanto à religião?
- Não há nada definido. O cristianismo das igrejas fez muitos estragos. Muitos de nós deixaram a espiritualidade natural com a qual nascemos para cultuar esse Deus Branco... Outros se mantém ligados aos Nossos Deuses, à Natureza, à Fonte Verdadeira de onde tudo veio e para onde tudo retornará.

À noite, participamos de uma grande festa no Marae. Fiz várias amizades, cantei, dancei, ri, ouvi histórias, contei lendas do meu povo e assim com me encantei com aquelas pessoas tão ricas, tão plurais, sei também que as seduzi com minha riqueza e ecletismo.
No dia seguinte, despedimo-nos de nosso amigo e dos demais e voltamos a Sidney. Eu me sentia pleno e poderia morrer naquele momento e partiria muito feliz. Captando meus pensamentos, Coiote falou:
- Nunca se esqueça de que você é o Senhor da sua Vida e da sua Morte.
- Por que está repetindo isso?
- Para que você não hesite quando decidir sair do planeta.
- Isso é uma previsão?
- E o que não é, meu amigo?

Passei mais seis meses naquele lugar paradisíaco, vivendo milhões de viagens fantásticas com meu companheiro. Ele juntou algum dinheiro; eu também, juntamos os nossos, despedi-me dos amigos e voamos para Lisboa e de lá, para Sintra.

Um comentário:

  1. Interessante! Já vi alguns filmes que mostram este costume de guardar a cabeça como um costume associado a coisas negativas.

    ResponderExcluir